Saturday, June 12, 2010





PARA UM DESIGN RELACIONAL

de ANDREW BLAUVELT




Haverá alguma filosofia que englobe e ligue projectos pertencentes a campos tão diversos quanto a arquitectura e o design gráfico e de produto? Ou teremos já ultrapassado essa fase? Poderemos esperar até que narrativas tão grandiosas ainda existam?

O campo do design gráfico é aquele sobre o qual me tenho debruçado mais. Nesta disciplina é extremamente difícil definir conjuntos coerentes de ideias ou crenças que tenham guiado os trabalhos mais recentes — decididamente, não há nada de tão definitivo como nas décadas anteriores, quer se trate dos maneirismos da chamada grunge typography, o brilho de um termo como o Pós-Modernismo ou, inclusivamente, como o rótulo reaccionário de Neo-Modernismo. Ao observar uma série de projectos nos diversos campos do design e abordar o tema em conferências, surgiram novos padrões. Parte dos trabalhos mais interessantes levados a cabo hoje em dia não é passível de ser reduzido à simples polémica da forma e contra-forma, acção e reacção, que se tornou a base previsível da maioria dos debates que decorrem há décadas. Estamos perante uma mudança de paradigma muito maior e que abrange todas as disciplinas do design, desigual na sua evolução, mas que possui um maior potencial transformador do que os ismos que a antecederam ou as tendências micro-históricas dariam a entender. Para ser mais preciso, creio que nos encontramos na terceira grande fase da história do design moderno: uma era de design relacional e contextual.

A primeira fase do design moderno, nascida no início do século xx, era a busca de uma linguagem formal plástica ou mutável, uma sintaxe visual passível de ser aprendida e, consequentemente, divulgada racional e, potencialmente, universalmente. Esta fase testemunhou uma sucessão de «ismos» — Suprematismo, Futurismo, Construtivismo, de Stijl, ad infinitum — que fundiram inevitavelmente a noção de vanguarda como sinónimo da própria inovação formal. Com efeito, é graças a esta herança do Modernismo que podemos hoje falar de uma «linguagem visual» de design. Os valores da simplificação, redução e essencialismo determinam a direcção da maioria das linguagens abstractas e formais do design. Esta evolução remonta à crença por parte dos primeiros construtivistas russos numa linguagem universal da forma que transcendesse as diferenças sociais e de classe (cultura livresca contra cultura oral), e estende-se aos logótipos abstractos das décadas de 1960 e 1970 que poderiam contribuir para reduzir os fossos culturais das grandes empresas transnacionais: do poster «Beat the Whites with the Red Wedge», de El Lissitzsky, à perfeita união formal sintáctica e semântica no logótipo do alvo da Target.

A segunda vaga do design, que tece o seu início na década de 1960, centrou-se no potencial de criação de sentido do design, no seu valor simbólico, na sua dimensão semântica e no seu potencial narrativo, assim, como no seu conteúdo essencial. Esta vaga continuou sob diversas formas durante décadas, tendo atingido o seu apogeu no design gráfico na década de 1980 e no início da de 1990, com a afirmação máxima da «autoria» por parte dos designers (controlando, deste modo, o conteúdo e, por conseguinte, a forma), e as teorias relacionadas com a semântica do produto, que procuravam incorporar nas suas formas o simbolismo funcional e cultural dos objectos e das suas formas.
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Se, durante a primeira fase, a forma gerava a forma, na segunda, a injecção de conteúdo nesta equação conduziu à produção de novas formas. Ou, como afirmou o filósofo Henri Lefebvre, «Há decerto um momento em que o formalismo se esgota, em que apenas uma nova injecção de conteúdo na forma poderá destruí-lo, abrindo, assim, caminho à inovação.» Parafraseando Lefebvre, só uma nova injecção de conteúdo na equação forma-conteúdo poderia destruí-lo, abrindo, assim, novos caminhos para a inovação.

A terceira vaga do design começou em meados da década de 1990 e explorou a dimensão performativa do design — os seus efeitos nos utilizadores, as suas restrições pragmáticas e programáticas, o seu impacto retórico e o seu potencial facilitador de interacções sociais. Como muitas outras coisas surgidas na década de 1990, estava estreitamente ligada às tecnologias digitais; embora fosse inspirada nas suas metáforas (redes sociais, colaboração open source ou interactividade, por exemplo), não estava limitada ao mundo dos zeros e uns.

Esta fase simultaneamente continuou e teve como ponto de partida as experiências sobre forma e conteúdo levadas a cabo no século xx que tradicionalmente definiram as esferas da prática vanguardista. Porém, as novas práticas de design relacional incluem elementos performativos, pragmáticos, programáticos, abertos, experienciais, participatórios e orientados para o processo. Esta nova fase preocupou-se com os efeitos do design, que vão para além do objecto do design, e até mesmo com as suas conotações e o seu simbolismo cultural.

Em termos linguísticos, poderíamos traçar o movimento destas três fases do design como dirigindo-se da forma para o contexto, passando pelo conteúdo; ou, na linguagem semiótica, da sintaxe à pragmática, passando pela semântica. Como ondas num lago, esta expansão centrípeta das ideias parte da lógica formal do objecto desenhado para a lógica simbólica ou cultural dos sentidos evocados por essas formas e, finalmente, para a lógica programática da produção do design e dos locais onde é consumido — a realidade complexa do seu derradeiro contexto.

Devido aos seus intuitos funcionais, o design teve sempre uma dimensão relacional. Por outras palavras, todas as formas de design produzem efeitos, pequenos ou grandes. O que é diferente nesta fase do design é o papel principal conferido a áreas que dantes pareciam estar para além da esfera da equação forma-conteúdo do design. O público imaginado, e frequentemente idealizado, por exemplo, torna-se num utilizador real — o chamado «mercado individual» prometido pela massificação personalizada [mass customization] e a impressão a pedido; o «consumidor final» pode até tornar-se o próprio designer, mediante projectos «faça-você-mesmo», o hacking criativo de designs existentes, ou crowdsourcing, produzindo juntamente com os seus pares de modo a resolver problemas cuja resolução se revelava demasiado complexa ou dispendiosa pelos meios convencionais. Foi esta a promessa feita pela revista Time ao nomeá-lo a si (em jeito de eu majestático) pessoa do ano em 2006, mesmo se evocava o domínio emergente de sítios como o MySpace, Facebook, Wikipedia, Ebay, Amazon, Flickr e YouTube, ou antecipava o modelo de negócio do Threadless. A participação do utilizador na criação do design pode ser observada em inúmeros projectos «faça-você-mesmo» em revistas como a Craft, a Make e a Readymade, mas também nos formatos genéricos para anúncios e cartões postais de Daniel Eatock.

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O facto de a própria natureza do design e os papéis tradicionais do designer e do consumidor terem mudado radicalmente não é uma surpresa. Na década de 1980, a revolução do desktop publishing ameaçou fazer de cada utilizador de um computador um designer; na realidade, serviu para alargar o papel do designer como autor e editor. A verdadeira «ameaça» ocorreu com o advento da Web 2.0 e os sítios de redes sociais e colaborativas que foram subsequentemente criados. Assim como o papel do utilizador se expandiu, chegando, por vezes, mesmo a incluir o papel do designer tradicional (ao estilo do profético «prosumidor» do futurista Alvin Toffler), também a própria natureza do design passou de dar forma a objectos discretos à criação de sistemas e a enquadramentos visando compromissos mais abertos: designs para a criação de designs. O designer de outrora estava intimamente ligado à visão de comando e controlo do engenheiro; o de hoje encontra-se mais próximo da abordagem de condição-acção [if-then] do programador. É esta lógica programática ou social que domina no design relacional, eclipsando a lógica cultural e simbólica do design baseado no conteúdo e a lógica estética e formal da fase inicial do Modernismo. O design relacional vive obcecado com os processos e sistemas de criação de designs, que não seguem a mesma lógica linear e cibernética de outrora. A lógica tipográfica da família de tipos Univers, por exemplo, estabeleceu um sistema profético e fechado de diversos pesos de tipos gráficos. Por outro lado, uma aplicação baseada na Web para o Twin, um tipo gráfico da Letterror, pode alterar substancialmente o seu aspecto com base em factores tão arbitrários como a temperatura do ar ou a velocidade do vento. Num design recente para um novo museu do design gráfico na Holanda, Lust criou uma «posterwall» digital automatizada, alimentada por fluxos de informação oriundos de diversas fontes da Internet e regida por algoritmos, concebida para produzir 600 posters por dia.
A melhor maneira de ilustrar este movimento para um design relacional será, porventura, o prosaico aspirador. No reino do sintáctico e do formal, temos o Dirt Devil Kone, desenhado por Karim Rashid, um objecto cónico e liso com tão boa aparência que «pode ficar à vista». Enquanto os designs de aspiradores de James Dyson se baseiam numa abordagem funcionalista clássica, os seus próprios designs personificam o significado da função, ao recorrer a uma segmentação das diferentes partes que os compõem segundo um código de cores e, inclusivamente, ao simbolismo expressivo de uma bola que rodopia para conotar uma abordagem de alta tecnologia à limpeza doméstica. Por outro lado, o Roomba, um aspirador robótico, usa vários sensores e programação para estabelecer a sua relação física com a divisão que se encontra a limpar, renunciando a qualquer contacto continuado com os seus utilizadores humanos, com excepção do encontro ocasional com um animal doméstico. No entanto, numa demonstração de desenvolvimento de produtos avançado, o fabricante do Roomba tem à disposição um kit básico que pode ser modificado por entusiastas dos robôs de inúmeros e inesperados modos, colocando, assim, o design nas mãos dos seus clientes.
A primeira fase do design deu-nos formas infinitas; a segunda, interpretações variáveis — a injecção de conteúdo de modo a criar novas formas. A terceira apresenta inúmeras soluções eventuais ou condicionais: sistemas abertos, em vez de fechados; as limitações do mundo real e contextos em vez de utopias idealizadas; ligações relacionais ao invés de imbricação reflexiva; no lugar do designer abandonado, a possibilidade de muitos designers; o desaparecimento de designs altamente controlados e determinados e a ascensão de sistemas facilitadores ou generativos; o fim dos objectos discretos e dos sentidos herméticos e o dealbar de ecologias conectadas.

Decorridos cem anos de experiências em matéria de forma e conteúdo, o design explora agora o reino do contexto em todas as suas manifestações — sociais, culturais, politicas, geográficas, tecnológicas, filosóficas, informáticas, etc. Uma vez que os resultados desta acção não convergem para um debate formal unificado, e porque desafiam os modelos e processos convencionais, não é líquido que a diversidade de formas e de práticas desencadeada possa determinar a trajectória do design no próximo século.

Andrew Blauvelt, Towards Relational Design Design Observer, 11.03.08

Nota: uma tradução portuguesa integral deste artigo, feita por José Manuel Godinho, será publicada no número 41 da Revista de Comunicação e Linguagens, "Design" (Org. José Bártolo), Relógio d'Água, Lisboa (no prelo).

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