Friday, January 11, 2008




O DESIGN EM “POSIÇÃO DE RISCO”.


Em Maio de 1998, durante uma iniciativa FUSE celebrada em São Francisco, Neville Brody refreava os ânimos de uma plateia bastante seduzida com as novas possibilidades digitais, afirmando que os designers “estão tão obcecados com a Rede e as novas tecnologias que descuram muitas vezes a mensagem” salientando a importância do design “ir além do ‘como’ e reconsiderar o ‘quê’ e o ‘porquê’ ” que definem a própria disciplina.

Que a atenção da grande maioria dos designers recaía mais sobre a forma do que sobre o conteúdo da comunicação, ficava claro pela diferente reacção suscitada por dois artigos publicados na revista Eye no final da primeira metade dos anos 90. “The cult of ugly”, no qual Steven Heller se referia ao surgimento de uma nova estética “desalinhada” no design gráfico, suscitou um debate muito mais alargado e intenso do que o excelente artigo de Andrew Howard, “There is such a thing as society”, onde uma lúcida e pertinente reflexão sobre a função social do design era desenvolvida.

Parece certo que as várias crises – crise das instituições, crise de valores, crise do sujeito – que marcam o fim do século XX e vêm culminar no que Fernando Gil classificou de “crise geral do sentido”, reivindicaram ou conduziram à auto-revindicação de um design “autoral”, “mediador” e “activo” socialmente, com características, a muitos títulos, novas.

Este perfil do designer como “interventor político” se não é, em termos absolutos, original na história do design é, pelo menos, original face ao seu enquadramento actual: em nenhuma outra época, nos confrontámos com este estatuto do designer como agente político no interior de um enquadramento dominado por uma espécie de regime “metademocrático” e “metadoxo”, onde o espaço de construção e circulação das opiniões se alargou exponencialmente, até ao limite do espaço público ser partilhado, quase sem brechas, por duas potenciais formas de ditadura: a do marketing e a da doxa.

O que o melhor do, assim chamado, “design socialmente responsável” hoje faz é “alimentar a esperança”. Regressando a Fernando Gil: “Não há alternativa. Felizmente o desenvolvimento das ciências e das artes e uma consciência social e politica que pouco a pouco se elabora contra o pano de fundo da crise, permitem-nos sem voluntarismo nem wishful thinking alimentar a esperança de se chegar ao fim do túnel.”, o que significa que a incapacidade – pelo menos parcial – de encontrar soluções e o carácter idealista das propostas não lhes retira o mérito de serem capazes de gerar um discurso positivo e esperançoso.

Num texto recente, Steven Heller comentava a intervenção de Michael Wolff, cronista da Vanity Fair, numa sessão do Designism 2:0, dedicada aos projectos de design, individuais e colectivos, de apoio às comunidades rurais, às minorias políticas e ao combate aos estereótipos sociais . Instado a comentar o envolvimento social de vários designers – de Jane Kestin e a Dove Campaign for Real Beauty às iniciativas pacifistas de Milton Glaser no Darfur ou no Iraque – Wolff considerou-o “banal” e “pouco original”, afirmando que o design e os designers “were incapable of challenging issues or changing minds because their collective arsenal of alternative clichés, which hás not changed in decades, is the same as mainstream ones which they sought to subvert”. Wolff rematava a sua crítica, ao que lhe parecia ser um discurso dominado por clichés, com um cliché: “It easy to criticize”. Bem a propósito, a resposta de Steven Heller, publicada no Design Observer, intitulou-se “It’s easy to criticize...not”. A questão não se reduz, no entanto, a uma avaliação do grau de conforto ou desconforto ligado à participação critica do designer nos processos de cidadania; a questão central não está na facilidade ou dificuldade em criticar mas, antes, na qualidade da crítica. Parece-me redutor identificar “crítica social” com “envolvimento cívico”, da mesma forma que não é possível identificar “atitude crítica"”com “envolvimento em causas” que, muitas vezes, tende a ser claramente acrítico.

O que nem Wolff nem Heller parecem não compreender é que a preocupação de determinados designers com o “bem da humanidade” não seja nem um cliché, como pretendia Wolff, nem a expressão de uma atitude crítica, como pretendia Heller, mas antes uma orientação natural de ideias e projectos caracterizados por uma clara intenção pública. O que acontece é que estes projectos, políticos no sentido de terem a esfera pública como espaço de intervenção, foram perdendo a sua definição ideológica, passando a ser definidos pela pertença a uma ética tendencialmente universal (ou pelo menos largamente consensual) que podemos designar por metaideológica, na medida em que reúne consenso à esquerda e à direita (veja-se o exemplo de temas como a ecologia, a sustentabilidade, a exclusão).

Esta busca de uma ética universal, fundada na metamorfose actual das democracias, apresenta-se como uma alternativa para o discurso político. A desconfiança de Wolff, mesmo que colocada com alguma má fé, não deixa de ter a sua razão de ser: vivemos numa cultura em que as ideias e as acções têm de se comprometer com um certo moralismo para se tornarem credíveis; tudo o que se passa no mundo parece requerer um certo posicionamento para o qual contam os valores, valores que têm o mérito de recriar a ilusão da escolha política. Não tenhamos ilusões: os exemplos de “projectos políticos” em design são absolutos simulacros de uma autêntica intervenção política e os exemplos de “ética” aplicada em design são, muitas vezes, bons exemplos de utilização cosmética de valores que se tornaram lugares-comuns do nosso actual estado de metadoxia.

Devemos desconfiar, quando a comunidade de design pratica uma nova encantação colectiva clamando em uníssono: “É preciso uma ética!”. As armas da moral serviram sempre para criar a aparência da “boa intenção”, para traçar o caminho de uma consciência esclarecida. O poder da moral arrisca-se a ser tanto mais dissimulado quanto mais se oferece como perspectiva futura.

O contraditório entre Wolff e Heller, introduzia também, assim por vias travessas, a questão da crítica e do seu papel no design (questão a que voltaremos num outro “post”) mas, também, a questão crítica - a da responsabilidade do design – e a da relação critica com esses “fundamentos éticos”.

Tomo para mim, apropriando-me, as ideias de um interessante texto de António Pinto Ribeiro intitulado, justamente, “A responsabilidade dos artistas”. A responsabilidade dos designers sendo, pela sua amplitude e “qualidade”, matéria complexa é, também, algo de objectivo, matéria constitutiva da disciplina. Não sendo todos iguais, não constituindo (para o bem e para o mal) uma corporação, não havendo mesmo um perfil de designer, é da responsabilidade individual enunciar uma atitude, um manifesto ou uma estratégia, ou tão somente enunciar o que o diferencia ou identifica com outro ou outros designers. É possível que haja designers que consideram que a sua obra não representa ninguém, que não pretende ser um reflexo cultural, que não inova nem conserva (ainda que inevitavelmente o designer tenha de ser um “agente de vanguarda” ou um “agente de retaguarda” mas, em boa verdade, underground e mainstream são “posições” hoje cada vez mais confundidas), e até é possível que, para alguns, a designação “designer” possa ser fonte de conflitos. Enunciar seria seguramente esclarecedor, porque diferenciaria as expectativas que cada designer tem perante o design e perante o seu mundo. Claro que esta responsabilidade, não deixando de ser individual, coloca-se também como uma exigência colectiva ligada à fundamental definição de uma “agenda” de design, definição essa que tem de envolver os agentes colectivos (associações profissionais, centros, escolas, media).

Assuma-se como negociador, comunicador, vendedor, político ou mediador, nenhum designer se pode colocar “fora do mundo” – por mais que se escude no cliente, na encomenda ou se refugie no espaço, tendencialmente abstracto, do atelier – nem se pode colocar “fora do seu mundo”, isto é, não se pode eximir a um sistema de valores que envolvendo usuários, clientes, meios de comunicação, mercados, críticos, envolve também os designers, reivindicando deles um contributo no sentido de fazer o esclarecimento deste sistema, tornando-o legível, de modo a que fique claro o que este sistema pode e deve esperar do designer e o que ele não pode nem deve esperar do designer.

Criando, recriando, dialogando, interferindo, interpretando ou anunciando-se como designer, espera-se que esteja permanentemente em “risco” e a “arriscar” (recordo essa bela proposta de tradução portuguesa de “design” por “risco” sugerida por Nuno Portas). Não é concebível que o designer sistematicamente aguarde pelo cliente para projectar. É necessário que o designer seja capaz de alargar a própria noção de cliente e seja capaz de conceber o acto projectual para além de uma visão clientelista. É fundamental assumir que um bom trabalho de design precisa de boas condições de produção, pelas quais o designer deve lutar, mas é absolutamente demagógica a ideia de que excelentes condições de criação produzem automaticamente excelentes designers e excelentes projectos.

Num momento em que os designers vão construindo uma espécie de estado que garante uma certa segurança normativa, importa revalorizar o projecto crítico (o projecto como crítica), mesmo que tal implique a dissolução deste estado de segurança e recoloque o designer em “posição de risco”.

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REACTOR é um blogue sobre cultura do design de José Bártolo (CV). Facebook. e-mail: reactor.blog@gmail.com