Tuesday, October 03, 2006

A DURAÇÃO DO EFÉMERO

José Manuel Bártolo


1.
Nas últimas duas décadas, o imaginário cultural das sociedades desenvolvidas desempenhou um papel essencial na transformação das identidades colectivas e individuais. É razoável pensar que o Design contemporâneo reflecte essas transformações, mas será igualmente legitimo acreditarmos que o design, enquanto disciplina projectiva, que serve para transformar e não tanto para legitimar a sociedade, foi produtor dessa transformação, mais do que produto dela.

A nossa comunicação procura dilucidar esta questão, colocando-a com uma certeza antecipada: se o design produziu as principais tendências que caracterizam a sociedade contemporânea, então deve ser posta em causa a eficácia da sua acção social; se, pelo contrário, o Design é produto das tendências contemporâneas então devemos admitir que a disciplina não foi capaz de se impor dando razão a certos discursos de crise que denunciam hoje o predomínio de um non-design, um design pobre, ao serviço de interesses puramente comerciais.

A época contemporânea quando comparada com o passado recente, aquele que vigorou até aos anos 80, apresenta alguns aspectos claramente estimulantes (pense-se no crescimento da liberdade individual) e outros decepcionantes (por exemplo a perda de consciência colectiva, a débil mobilização e solidariedade macro social, apenas parcialmente desmentida em manifestações pontuais como a manifestação a favor da paz do 14 de Fevereiro).

Certo é que a sociedade contemporânea passou por um período como lhe chama Cathelat de “microsocialização” para o qual a tendência, quase sempre superficial, de personalização dos objectos de design, também contribuiu. Esta microsocialização não resultou de nenhuma descentralização regional, nem de qualquer conflito entre classes sociais ou gerações tradicionais, como aqueles que originaram mudanças sociais nos anos 60, antes resultou de uma nova segmentação de estilos de vida que, por sua vez, provocaram uma fragmentação dos espaços socioculturais clássicos e das suas categorias e classificações convencionais.

Operou-se então uma abstracção das estratificações sociais, tornando-se a sociedade no seu todo uma estrutura flutuante alvo de actualizações permanentes sujeitas à lógica das tendências. A lógica da tendência no seu sentido mais geral parece ser operadora de anulação de pontos fixos, de pontos de estabilidade, gerando abstracções que envolvem em si não apenas uma dimensão mental, mas igualmente uma dimensão estrutural: é exactamente neste sentido que deve ser compreendida a tendência de desmaterialização e aceleração que caracteriza o Design Contemporâneo.

É Paul Virilio quem, numa obra recente, fala da época contemporânea como sendo dominada por aquilo que ele chama de uma estética da desaparição. Tal conceito remete-nos para dois processos caracterizadores da contemporaneidade: por um lado para um processo de esteticização; por outro lado para um processo de desmaterialização.

De seguida iremos procurar analisar estes dois processos, tentando mostrar que eles devem ser entendidos na sua interligação.


2.
No seu Escape from Entropy o designer holandês John Thackara refere-se de uma forma muito clara a este novo protagonismo estético “A dimensão estética, diz Tackhara, é uma das características da nossa época visível quer na sobrevalorização das componentes comunicativas, quer no novo protagonismo do simbólico e do imaterial. Mas, para além desse peso, a dimensão estética alarga-se com o objectivo de conferir à vida quotidiana uma permanente capacidade de transfiguração.”.

Parece claro que as alusões à época contemporânea enquanto época dominada por esta tendência estética, pressupõe uma compreensão da estética que rompe com a sua definição clássica. A atitude estética passa a ser sinónimo de uma atitude passiva, superficial, neutral, é com este sentido que ela é usada quer por filósofos como Lipovetsky ou Baudrillard, quer por Designers como Tackhara ou Branzi.

Na sua definição clássica a estética refere-se a uma forma de conhecimento ligada á sensibilidade é assim que a encontramos definida em Baumgarten ou em Kant. Esta definição clássica é trabalhada por uma tradição estética que percorre o século XVII e culmina na obra de Kant e que, por sua vez, é contemporânea e complementar da fundação do grande sistema de saber na ciência da natureza. No final do século XVIII encontramos formados três sistemas disciplinares que demarcam três grandes territórios linguísticos e três sistemas codificadores: a estética, a ciência da natureza e a economia politica que elabora o seu próprio sistema a partir de regras empíricas da sua incipiente produção em série.

As diferenças entre os três sistemas podem ser identificadas recorrendo, por exemplo, à tripla definição do conceito de “qualidade” identificada por Fulvio Carmagnola : qualidade estético-sensível; qualidade cientifica; e qualidade tecnológica.

Embora nos apareçam diferentes discursos definitórios a noção pode ser circunscrita a duas dimensões semânticas fundamentais:

1- qualidade é a identificação de atributos de um objecto sem referência a uma hierarquia de valores
2- qualidade é a identificação de atributos de valor inscrevendo-se na lógica de articulação de um discurso definitório (estético, ético, politico, tecnológico)

Identidade e valor são os pólos essenciais. O primeiro identifica um discurso epistemológico, o segundo identifica um discurso axiológico. A característica chave da modernidade é o entrecruzamento dos dois pólos a anulação da sua polaridade. De facto, hoje semânticas valorativas tendem a fundar não apenas um domingo axiológico, mas igualmente epistemológico e semânticas descritivas ou analíticas tendem não apenas a formar um domínio epistemológico mas igualmente um domínio axiológico.


As transformações que ocorreram na passagem para a contemporaneidade, e que desintegraram totalmente, os três sistemas epistemológicos e axiológicos tradicionais a que anteriormente aludimos, é também visível na actual definição de qualidade e na identificação, hoje natural, entre qualidade e qualidade tecnológica.

De facto, a qualidade tecnológica está no centro da experiência da modernidade. Não nos esqueçamos que do ponto de vista estrutural, a modernidade funda-se sobre a "moderníssima ciência" da tecnologia, como Marx lhe chama no primeiro livro do Capital.

É Alexandre Koyré, quem assinala a passagem fundamental que caracteriza a modernidade a partir da emergência tecnológica: a passagem do objecto artificial como utensílio, para o objecto artificial como instrumento. A tecnologia instrumentaliza, agencia, na linguagem de Deleuze, isto é, não apenas produz objectos, mas a condição de possibilidade dessa produção, uma vez satisfeita gera dispositivos e instrumentos que estruturam e legitimam os próprios agenciamentos tecnológicos.

A qualidade tecnológica de produção deixa de ser um qualidade qualitativa, para passar a ser uma qualidade quantitativa, legitimada, pela apologia da máxima: mechanization takes command.

Numa das últimas entrevistas dadas por Lyotard antes da sua morte, o autor falava de um alargamento na cultura contemporânea do que ele chamava de "regime de abstracção", tal regime representava um curioso alargamento do campo da tecnologia, promovendo uma nova relação entre utilizadores e objectos tecnológicos, sobretudo, objectos de alta tecnologia, uma relação assente na pura contemplação estética. O que Lyotard fixava falando em regime de abstracção era um cada vez maior números de objectos de design sem qualquer valor funcional que passavam a valer como objectos rituais num espaço tendencialmente abstracto, isto é, num espaço em que o utilizador se torna tendencialmente passivo. Os objectos perdendo a sua dimensão de utensílios e tornando-se instrumentos, passam a revelar-se instrumentalizantes ou seja perdendo a sua dimensão funcional utilitária agenciam modos de relação a partir dos quais ganham razão de ser.

Este estado de coisas pode ser apreendido a partir da análise de uma nova definição de qualidade. A qualidade de um objecto de design deixa de estar na excelência do seu cumprimento de funções de uso, passa a estar na correcta definição de uma lógica comercial que enquadra o objecto. É a substituição de um modelo operativo funcionalista ajustado à produção em série diversificada, pela de um modelo operativo market oriented.

Este modelo pode ser estudado a partir de diferentes pontos de vista: a partir da análise dos processos de demassificação e flexibilização das estruturas produtivas; a partir da análise da diversificação dos modelos de consumo; a partir do estudo de estratégias organizativas baseadas na interpretação de metáforas; ou de estratégias culturais baseadas na análise antropológica da linguagem e da interacção simbólica; ou de modelos integrados de comunicação de empresa baseados em meios fortes de criação de fidelidade; ou, ainda, e finalmente, na análise da interacção simbólica no campo da organização, que por exemplo, Pierre Bourdieu tão bem estudou.

Não nos interessa demorarmo-nos na análise de cada uma destas doutrinas, antes importa percebe-las como peças de um puzzle e perceber para que direcção elas estão orientadas.

Essa direcção parece claramente ser a direcção do mercado que faz com que haja uma partilha comum entre todas as coisas que são projectadas e produzidas, partilha comum que reside no facto de todas elas serem, num determinado grau, entendidas como mercadorias.

Afirme-se no entanto que a mercadoria vista hoje como ponto central do consumo contemporâneo é profundamente diferente da mercadoria marxista.

Na contemporaneidade estamos a falar da mercadoria elevada a hiper-mercadoria, promovida por dispositivos comunicativos, promotores de simulacros, constructores de hiper-realidades, como lhes chama Jean Baudrillard.


3

Hoje falamos numa mercadoria no interior de um consumo complexo, que se torna signo, forma-signo, signo comunicativo, signo imaterial de distinção. Os valores de troca, bem como os valores de uso tornaram-se hoje imaterais. Esta imaterialidade, a forma como ela é usada, permite enunciar uma espécie de regra estética da qualidade difusa, ligada ao estilo de vida pós-industrial. Aquilo que Lyotard chama de “sofisticação da matéria”, remete não apenas para a perversidade da informática, mas, igualmente, para fenómenos perceptivos. Citando Manzini a qualidade inefável usada na óptica da projecção.

Quanto mais se privilegia a qualidade, mais sensível se é à marca, nota Kapferer. Mas a lógica da qualidade não é apenas uma lógica funcional, ela é essencialmente simbólica. Como a insígnia barroca, a marca pós-industrial veicula um conjunto de significados de pertença, tornando-se um instrumento de identificação.
Até agora para medir a qualidade, usávamos a matemática; a partir de agora devemos usar a semiótica; temos de passar a avaliar a qualidade em termos qualitativos e já não apenas quantitativos.

O valor de uso (forma-função) núcleo forte da época industrial, é hoje substituído pelo valor simbólico (forma-símbolo).

Esta circunstância implica naturalmente a alteração, a desintegração, como lhe diz Fulvio Carmagnola, da posição hierárquica da estrutura e superestrutura,. A desintegração do hardware, a supremacia do software, é o exemplo da desintegração de um modelo forte da qualidade primária e a sua substituição pela qualidade secundária. É a imposição da lógica do multiple quality, sobre a lógica do Total quality, do início dos anos 80, é a imposição da qualidade multidimensional, contemplando os aspectos semânticos, simbólicos, emocionais, como se de verdadeiros materiais se tratassem. “ Não é, em vão que Philipe Starck afirma “que caminhamos para a desmaterialização, para o desaparecimento físico das aplicações” e conclui afirmando que “no futuro não teremos de nos preocupar com a função mas antes com a dimensão emocional, semântica e simbólica das coisas”.

A frase de Starck não nos deve remeter tanto para a ideia de uma anulação da função, mas mais para o aparecimento de novas tipologias da função. Não é por acaso que o próprio Starck se afirma como um verdadeiro funcionalista podendo dizer que o seu “espremedor de citrinos” (Alessi) ou as suas cadeiras “Dr. Sondebar” são objectos funcionais enquanto objectos comunicativos.

As novas tipologias da função podem ser sistematizadas em dois grupos: um primeiro identificando os objectos de função em aberto: aqui incluiríamos quer os objectos híbridos, multifuncionais, como as impressoras que a Ideo projectou para Thompson associando a função de impressora a um objecto de interiores ( mesa-impressora, caixote do lixo impressora) quer uma nova geração de objectos integrados no que Branzi chama de Design primário pós-moderno e que caracteriza objectos cuja função é dada interpretativamente pelo utilizador); uma segunda tipologia classificaria os objectos de função emocional, de que os Tamagoshi foram, talvez, pioneiros.




4.

A época contemporânea assistiu a uma inversão da própria percepção da realidade, a uma tendencial inversão das dimensões interno/externo. Por um processo de exteriorização de categorias tradicionalmente interiores, por um processo de interiorização de categorias tradicionalmente exteriores. Os objectos interiorizam-se como no relógio intercutâneo de Philip Starck, perdem espessura como swatch skin, tornam-se próteses integradas como no telemóvel piecing da ideo; enquanto as emoções, os sentidos, as crenças se exteriorizam e objectivizam como no “kiss transmissor” da IDEO.

O culto do look, o culto da individualidade, que carcterizaram a década de 80, profundamente estudado por autores como Gilles Lipovetsky ou Alain Finkiekkraut deve ser considerado nesta análise da superficilização que marca o design e a arquitectura contemporânea, de facto esta não pode ser desligada dessa transformação mental, do investimento na superfície, de que o culto do corpo, a compreensão do corpo como suporte de mise-en-scene como, se lhe refere David Le Breton, através do body painting, do body piercing ou do body building são exemplo.

Por outro lado os objectos em design, e as construções em arquitectura tornam-se building body’s, mas um corpo tomado como corpo-pele ( para usar expressão de Didier Anzieu), isto é corpo- superfície, interface. Os projectos de Kas Oosterhuis são neste contexto paradigmáticos.

A look generation contemporânea, impõe uma concepção do corpo absolutamente superficial, como representação, como imagem e como linguagem, a interpretar mediante a contínua multiplicação de signos. O êxito do pret-a-porter conduz ao auge do corpo superficial, marcado pela tatuagem mais consistente que existe na actualidade: a moda.

Por outro lado a superficialização está ligada, também, ao desenvolvimento tecnológico. É clara uma relação inversamente proporcional entre materialização e tecnologia. Quanto maior é a componente tecnológica menor é a componente material. Quanto maior é a eficácia do software menor é o protagonismo do hardware.

Mas a desaparição de que falamos é uma desaparição ou desmaterialização de estruturas materiais e temporais. Alteração espaço e alteração tempo que caracteriza claramente a actual produção em Design. Deste modo os objectos de design não só se alteram na sua definição material, mas igualmente na sua definição temporal: a este respeito é quase suficiente dar como exemplo a nova definição de valor de tempo de vida dos objectos.

Esta noção de “life time value” foi particularmente bem trabalhada por Jeremy Rifkin. O que Rifkin identifica é a substituição no Design Contemporâneo do eixo da durabilidade pelo da novidade. Dieter Rams ensinava que um bom objecto de Design Industrial devia ter um tempo médio de vida de 15 anos, ora hoje é claro que por exemplo um telemóvel com 15 anos é um objecto obsoleto. Desvalorizado, o valor da durabilidade, foi substituído pelo valor da novidade, com as naturais consequências do ponto de vista da produção e comercialização: o valor do novo impõe objectos projectados para serem objectos efémeros e exige ritmos acelerados de substituição dos objectos, levando a uma lógica de permanente re-design que sendo condicionada igualmente condiciona o mercado cada vez mais transformado em mercado de desejos e sendo cada vez menos mercado de necessidades

Veja-se como exemplo limite o êxito de um projecto como o “Invisible Jim” lançado no verão de 2001 e ainda acessível via internet. O “Invisible Jim” é um boneco invisível, ao compra-lo o consumidor leva para casa apenas uma embalagem plástica transparente. O que se compra é uma ideia, o que se paga é uma ideia, ou, talvez mais que isso ou menos que isso, o que se compra é a perversão de uma ideia.

Perante este quadro encontramos designers a apelar para um retorno aos fundamentos do Design. Mari no manifesto de Barcelona di-lo de forma veemente

"Deve ser recuperada a tensão utópica das origens do Design. Se este é a alegoria da transformação possível, é preciso que tal mensagem possa chegar à maior parte das pessoas. Aquelas mesmo que, realizando na alienação o nosso ambiente, continuam sendo potencialmente as responsáveis pela sua transformação.
Actualmente, os mecanismos criados pela revolução informática engolem qualquer ideia para vomitar mercadorias.
É preciso, nas próximas décadas, para começar, encontrar os modos idóneos a isolar de redundâncias as ideias de transformação separando-as de todas aquelas originadas por anarquias irresponsáveis que negam e banalizam a pulsão para a utopia e tornam, assim, impossível qualquer envolvimento das pessoas.
Valeria a pena, no entanto, generalizar a ideia: a ética é o objectivo de cada projecto ( o que é equiparável ao juramento de Hipócrates)."
[Enzo Mari, Il Lavoro al Centro]

Num período onde tudo parece ser possível, valeria a pena acreditar que também é possível acontecer o melhor, que também há lugar para a excelência, que também há lugar para a excelência no que toca à eficácia e responsabilidade da acção social dos projectos – excelência essa que o autêntico design sempre perseguiu, e que, enfim, o autêntico design, sempre perseguirá.

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